Essa reportagem é complementar às matérias de Treinamento e de Seu Corpo da edição passada (edição 22 - fevereiro de 2005). Nelas, tratamos de como organizar todo um ano ou semestre de treinos de corrida (macrociclo), com base na prova que você estipular como mais importante do ano ou semestre. O macrociclo foi então dividido em quatro períodos: de base (em que os treinos enfatizam o condicionamento cardiorrespiratório e a preparação muscular geral do atleta), pré-competitivo (em que os treinos de intensidade mais elevada garantem aumento da velocidade), competitivo (em que o atleta se prepara para a prova) e de transição (de recuperação pós-prova).
Cada período foi dividido ainda em mesociclos, que compreendem três a quatro semanas de treinamento. Na reportagem desta edição, vamos falar justamente da semana de treino, que forma um microciclo, e de cada sessão de corrida especificamente, que forma uma unidade de treino.
Periodização
Esse trabalho de planejamento dos treinos de corrida é chamado periodização. Já foi feito empiricamente em diversos momentos da história, mas foi sistematizado em livros publicados pelo russo Matveiev a partir da década de 1960. O conceito foi revisto por diversos estudiosos e aperfeiçoado para cada esporte.
Atualmente, médicos e fisiologistas explicam por que a periodização é importante para o corredor, seja ele amador ou profissional. “Programar os treinos é fundamental para quem quer melhorar sua performance, porque a periodização gera as adaptações necessárias no organismo para aumentar o nível de condicionamento do esportista”, afirma Carlos Eduardo Negrão, fisiologista, professor titular da Escola de Educação Física e Esporte da USP e diretor da Unidade de Reabilitação Cardiovascular e Fisiologia do Exercício do Instituto do Coração (InCor – HC FMUSP).
O princípio da supercompensação
A periodização está baseada no princípio de supercompensação: quando o corpo recebe uma sobrecarga (estímulo maior que sua capacidade naquele momento), vai consumir energia, mas a reposição das reservas energéticas é feita acima da condição anterior. Ou seja, o organismo não apenas restaura a mesma capacidade que tinha de fazer um exercício como faz um estoque maior de energia em preparação para um esforço mais intenso (veja o gráfico 1). Assim, na sessão seguinte de treino, o corredor partirá de um estado de condicionamento melhor e o cansaço deve demorar mais para chegar.
1:: SUPERCOMPENSAÇÃO
A supercompensação exige, porém, que o corredor espere o tempo necessário para que o seu organismo recupere e amplie as reservas que gastou. “A supercompensação depende da recarga de energia (basicamente glicogênio muscular e hepático) e da recuperação das fibras musculares lesadas durante o exercício”, explica Luciene Ferreira Azevedo, professora de educação física e fisiologista da Unidade de Reabilitação Cardiovascular e Fisiologia do Exercício do InCor. Se o corredor fizer um novo esforço antes de a recuperação estar completa, ele vai partir de uma condição física pior que no treino anterior – o que, progressivamente, vai fazê-lo perder sua reserva energética, diminuir seu condicionamento e perder performance.
2:: TREINAMENTO SEM RECUPERAÇÃO COMPLETA
Esse tempo de recuperação varia de pessoa para pessoa – e quanto mais treinado o corredor, menor o tempo necessário para a supercompensação. Além do nível de treinamento, o tempo de recuperação também depende da alimentação, das horas de sono e da intensidade do exercício. Se a sessão de corrida tiver sido feita com esforço moderado, em exercício aeróbio, o atleta vai ter gasto basicamente gordura, o que não exige muito tempo de recuperação entre um exercício e outro: 24h devem ser suficientes. Já os exercícios de alta intensidade (anaeróbios) gastam as reservas de glicogênio e produzem ácido lático, o que exige mais tempo de recuperação do organismo: de 24h a 48h. “Por isso, se a pessoa quiser correr um dia depois de fazer um treino intervalado, por exemplo, deve fazer outro tipo treino, de leve a moderada intensidade”, explica Luciene.
:: exercício aeróbio: 24h de recuperação
:: exercício anaeróbio (de intensidade alta): 24h a 48h de recuperação
Outras regras básicas, principalmente para amadores, são:
:: não se deve correr duas vezes no mesmo dia;
:: deve-se variar o tipo de estímulo (forte, leve, moderado, aeróbio, anaeróbio) de um dia para o outro, para gerar uma adaptação mais eficiente do seu organismo.
:: não é necessário treinar todos os dias da semana para melhorar a performance;
Por outro lado, corredores que só treinam nos fins de semana não aproveitam a supercompensação. O estoque extra de energia do organismo é um mecanismo de defesa, preventivo caso o corpo seja exigido novamente em um certo espaço de tempo. Se a reserva extra não for usada, o nível dos estoques vai voltar ao do condicionamento anterior. (veja o gráfico 3).
3:: TREINAMENTO COM MUITO INTERVALO
Outra forma de treino que não provoca a supercompensação é correr sempre o mesmo tempo, a mesma distância (volume) ou na mesma intensidade (esforço). “Se o estímulo for sempre igual, o organismo simplesmente se adapta a esse patamar de condicionamento e não aumenta as reservas”, afirma Luciene (veja gráfico 4).
4:: TREINAMENTO SEM VARIAÇÃO DE ESTÍMULO
“De uma forma geral, para obter condicionamento é necessário treinar pelo menos três dias por semana, em dias alternados, e variando a intensidade e o volume dos treinos”, resume Luciene. Observe no gráfico 5 que treinar aproveitando a supercompensação eleva o nível de condicionamento. Esse é o principal mecanismo que vai nortear o planejamento da sua semana de treinos.
::5 TREINAMENTO IDEAL
O microciclo
O fundamento do microciclo é organizar seus treinos de forma a haver uma relação ótima entre o esforço e o tempo necessário de recuperação. O corredor deve ter duas preocupações:
:: evitar a monotonia (não treinar sempre a mesma distância, nem a mesma intensidade)
:: evitar a fadiga (descansar tempo suficiente).
Para distribuir os treinos de corrida pela semana, o professor Valdir José Barbanti, pós-graduado em Educação Física pela Universidade de Iowa (EUA) e professor titular da Escola de Educação Física e Esportes da USP, sugere algumas regras, no livro Teoria e Prática do Treinamento Esportivo:
:: não se deve começar a semana com um treino forte (em intensidade ou em volume), porque o atleta não deve iniciar o microciclo com cansaço acumulado. Por isso, os treinos de maior intensidade são sempre no meio e no fim da semana.
:: no dia seguinte ao treino forte, a sessão de corrida deve ser feita em intensidade baixa.
:: as competições costumam ser de fim de semana, portanto coincidem com um dia de treino forte. Assim, você não precisa mudar radicalmente a estrutura do seu microciclo quando tiver uma prova no fim de semana.
Ele sugere duas distribuições de cargas de treino durante a semana para atletas bem treinados e quem fazem cinco ou sete sessões de treinos semanais:
:: ATLETA COM 7 TREINOS POR SEMANA
:: ATLETA COM 5 TREINOS POR SEMANA
Para quem treina quatro vezes por semana (2ª, 4ª, 6ª e sábado ou 3ª, 5ª, sábado e domingo), Luciene sugere que o primeiro treino seja de intensidade moderada; o segundo seja forte; o terceiro, leve; e o quarto tenha bastante volume, mas intensidade moderada.
:: ATLETA COM 4 TREINOS POR SEMANA
A intensidade é dada na porcentagem da freqüência cardíaca máxima - FC máx - em que a pessoa deve fazer seu treino ou de acordo com o limiar em que deve treinar (leia o quadro “VO2 máximo e os limiares). Para quem não sabe seus limiares ou sua freqüência cardíaca máxima, uma forma de medir a intensidade dos treinos é avaliar o esforço que foi efetuado no treino de acordo com a escala de Borg:
7-8 Muito fácil
9-10 Fácil
11-12 Relativamente fácil
13-14 Ligeiramente cansativo
15-16 Cansativo
17-18 Muito cansativo
19-20 Exaustivo
Em concordância com esse padrão, o treinador Fabio Rosa, coordenador técnico da MPR Assessoria Esportiva, pós graduado em fisiologia do exercício pelo Centro de Alto Rendimento de Barcelona, propõe as estruturas semanais de treino para atletas iniciantes, intermediários e avançados que fazem provas de 10km, meias maratonas (21km) e maratonas (42km). O treino sugerido é para a primeira semana do macrociclo e deve seguir a progressão de intensidade e volume sugerida na reportagem de Treinamento de fevereiro.
A unidade de treino
Cada um dos seus treinos também uma estrutura básica. Todo treino deve começar com um aquecimento, evoluir para o conteúdo principal de corrida e terminar com um desaquecimento ou relaxamento.
Aquecimento – serve para fazer uma passagem gradual do corpo do estado de repouso para o estado de esforço que o exercício exige. “No aquecimento o corredor prepara a musculatura para as sucessivas contrações que fará durante a corrida e eleva gradativamente a freqüência cardíaca”, explica a fisiologista Luciene. Ela recomenda fazer um trote leve, seguido de um alongamento. A duração do trote depende da intensidade do treino que virá a seguir:
:: leve a moderada – 5 a 10 minutos
:: forte – 10 a 15 minutos.
Esse tempo deve ser maior caso a temperatura ambiente esteja baixa. “O ideal é você sentir que a musculatura está relaxada e você tem um pouco de calor”, diz Luciene.
Principal – é a parte característica de corrida. Engloba os diversos tipos de treino (veja quadro) e também deve seguir alguma regras:
:: os exercícios que exigirem concentração, reação e coordenação motora (como os de técnica de corrida ou de velocidade) devem ser feitos no início.
:: exercícios de resistência devem ser feitos depois.
Desaquecimento – tem de ser leve, alegre e descontraído para o corredor. Pode incluir jogos (desde que não exijam muita precisão motora) ou um simples trote ou caminhada na grama. Ainda, deve ser feito um bom alongamento (de pelo menos 10 minutos – segurando cada posição por pelo menos 20 segundos), segundo recomenda Marcelo Vaz, treinador especializado em corrida, técnico da equipe de corrida da Favela da Rocinha. O objetivo é trazer o organismo de volta ao ritmo normal. “O coração deve voltar ao ritmo mais lento. O trote leve e o alongamento facilitam a regeneração da musculatura, que sempre sofre microlesões durante a corrida”, explica Luciene.
:: GLOSSÁRIO: TIPOS DE TREINO
TREINOS DE CAPACIDADE AERÓBIA
Contínuo – corrida em ritmo constante, feita entre o L1 e o L2
Contínuo longo – apelidado de “longão”, é semelhante ao contínuo, mas com quilometragem maior.
TREINOS DE POTÊNCIA AERÓBIA/ VELOCIDADE/ INTENSIDADE/ QUALIDADE
Fartlek – são treinos em que o corredor alterna um ritmo forte (corre no L2) com um ritmo mais leve (entre L1 e L2). O atleta corre o tempo todo, mas aumentando e diminuindo a intensidade a cada determinada distância ou tempo. (Para aquecer, geralmente, é feito um trote leve).
Intervalado – é o famoso treino de “tiro”: o atleta corre em intensidade alta (acima do L2) durante um determinado tempo ou distância. Entre um tiro e outro, faz um intervalo (com caminhada ou trote bem leve), por isso o treino é chamado intervalado. Se for feito em intensidade muito alta, serve também para aumentar a tolerância do organismo ao ácido lático – assim os sintomas de cansaço não aparecem tão rapidamente na corrida.
TREINOS ESPECÍFICOS – são treinos para que o atleta se acostume com as características da prova que vai enfrentar. Ex: treinos em subidas, em piso específico (areia, terra batida etc), em temperaturas altas/ baixas e treinos de ritmo de prova (o atleta corre uma parte da quilometragem da prova mantendo um tempo proporcional ao quer fazer na competição).
TREINO REGENERATIVO – geralmente um treino contínuo feito abaixo do L1, normalmente no treino seguinte ao de intensidade alta.
VO2 máximo e os limiares
O VO2 máximo é o volume máximo de oxigênio que o corpo consegue absorver nos pulmões e usar na produção de energia durante um minuto. Ele é medido em um teste ergoespirométrico, que determina também o limiar anaeróbio L1 (chamado de limiar aeróbio, é o ponto em que o corredor passa a fazer o exercício aeróbio, ou seja, com energia predominantemente gerada com uso de oxigênio) e o limiar anaeróbio L2 (ponto em que a geração de energia em processo anaeróbio supera o aeróbio).
Ao fazer um exercício com a freqüência cardíaca entre o L1 e o L2 (exercício aeróbio), o corredor se cansa menos, porque os resíduos da respiração aeróbia são normalmente eliminados. Ao atingir (e ultrapassar) o L2 (exercício anaeróbio), o corredor fica cada vez mais cansado, porque o processo anaeróbio leva ao esgotamento do glicogênio estocado nos músculos e à liberação de mais ácido lático do que o corpo é capaz de eliminar. Isso provoca a sensação de cansaço.
:: TREINOS PARA PROVAS DE 10KM - 21KM E 42KM
:: MONTE SUA PLANILHA
Especialistas consultados
Carlos Eduardo Negrão, fisiologista, professor titular da Escola de Educação Física e Esporte da USP e diretor da Unidade de Reabilitação Cardiovascular e Fisiologia do Exercício do Instituto do Coração (InCor – HC FMUSP);
Fabio Caravieri Rosa, coordenador técnico da MPR Assessoria Esportiva, pós graduado em fisiologia do exercício pelo Centro de Alto Rendimento de Barcelona
Luciene Ferreira Azevedo, professora de educação física e fisiologista da Unidade de Reabilitação Cardiovascular e Fisiologia do Exercício do InCor;
Marcelo Vaz, treinador especializado em corrida, técnico da equipe de corrida da Favela da Rocinha;
Valdir José Barbanti, pós-graduado em Educação Física pela Universidade de Iowa (EUA) e professor titular da Escola de Educação Física e Esportes da USP.
REVISTA O2 - EDIÇÃO 23
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